Futebol Interativo

19/09/24 | Leitura 8min

A Importância da Frustração na Formação dos Jogadores

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A IMPORTÂNCIA DA FRUSTRAÇÃO NA FORMAÇÃO DOS JOGADORES


Por Marcus Arboés

Uma fala do Vitor Roque viralizou recentemente sobre sua estreia no profissional, em que ele entrou no segundo tempo e saiu 18 minutos depois, se sentindo muito frustrado. Junto a isso, narrei uma final de estadual sub-20 e o resultado me fez refletir sobre a importância do jovem jogador se frustrar e sobre como o resultado é e precisa ser visto nas categorias de base.

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Vitor Roque e o sonho frustrado

A temporada europeia anterior, para Vitor Roque, foi muito diferente daquilo que ele e muitos torcedores projetavam. O sonho de jogar no time que teve Ronaldinho Gaúcho, Rivaldo, Romário, Ronaldo e Neymar, de figurar em noites de Champions League e, quem sabe, se consolidar na seleção brasileira. Foi diferente, Vitor Roque foi subutilizado e não conseguiu render, preterido em muitos momentos.

Mas esse caminho, para o atacante brasileiro, já era conhecido, porque, apesar de novo, já é um atleta profissional com expectativas alinhadas e que, no meio da curta carreira, já precisou passar por momentos emocionalmente desafiadores. Numa fala recentemente viralizada para o The Players Tribune, Roque explicou como foi o seu primeiro jogo, onde entrou no segundo tempo e foi sacado com 18 minutos porque nada deu certo.

Confira:

“A minha estreia mesmo foi no Independência, num jogo contra o Botafogo. E foi... uma experiência diferente de tudo o que eu tinha projetado. Pensei que entraria em campo e a mágica aconteceria com naturalidade, com a bola chegando nos meus pés e eu executando o que tinha treinado durante a semana. Ou quem sabe até marcando meu primeiro gol como profissional. Só que não foi assim.

Acho que as pessoas se lembram, e eu mesmo ainda não esqueci. No começo do segundo tempo, eu entrei em campo. E depois de 18 minutos, não veio o gol, não teve nenhuma assistência, nenhum drible. Na verdade, 18 minutos depois, eu fui substituído.

Os meus companheiros de clube me apoiaram. A comissão técnica me disse para seguir no mesmo caminho, inclusive o Luxa me recebeu com palavras de incentivo quando cheguei no vestiário. Mas o meu sentimento era outro, de frustração.

Como estava começando, eu ficava muito em rede social querendo saber a reação dos torcedores e aquilo, de alguma maneira, me contaminava.

‘Ah, só jogou 18 minutos.’ ; ‘Esse moleque aí não serve.’ ; ‘Não vai vingar.’

Nessa época, sempre que chegava em casa depois dos treinos, eu só chorava. Eram muitas críticas e eu achei que não seria capaz de dar a volta por cima. A parte boa desse momento que eu vivi tem muito de uma música que diz: ‘O choro pode durar uma noite, mas a alegria vem cedo’. E para mim veio depressa, graças a Deus e à ajuda de algumas pessoas.

A experiência que Vitor compartilha tem várias nuances. Naquela altura, com só 16 anos, ficou tão empolgado que acabou correndo muito de forma intensa naqueles 18 minutos em que ficou em campo e não estava mais dando conta da demanda física do jogo, de acordo com o treinador Luxemburgo, que comandava o Cruzeiro em 2021.

Foi o mesmo treinador que o consolou, depois, mas a autocobrança vem ao jogador através de um comportamento quase compulsivo de ir buscar a afirmação negativa daquilo que já estava assumindo sobre si através das redes sociais, que nos servem para confirmar qualquer coisa que já estamos tomando como verdade absoluta. Foi uma estreia atípica, mas com certeza não dizia muita coisa ou pelo menos não o que as redes sociais gritavam.

Se homens maduros de 30 anos não têm inteligência emocional para lidar com a pressão da torcida, imagine um garoto de 16 anos, que ainda vislumbra muitas coisas sobre o mundo e está com os hormônios e emoções a flor da pele, pegando fogo, cheio de impulsos em relação a vida e ao futebol. Meninos e meninas em formação são expostos a um mudo de adultos o tempo inteiro e, no futebol brasileiro, a cobrança talvez vá ser desproporcional para sempre.

Contudo, felizmente, o resto da história do Vitor Roque é bem feliz. Essa frustração da estreia surpreendentemente negativa para a comunidade do futebol lhe serviu de aprendizado, ajudou a criar uma casca que, geralmente, mesmo um atleta que acabou de subir ao profissional, não aprende a ter. E é muito importante sentir a dor e a frustração da derrota, desde cedo, principalmente nas categorias de base, onde o resultado dos jogos e das competições têm outro viés. É importante, porque no futebol se perde mais do que ganha, se “fracassa” mais, pelo menos na visão resultadista do jogo.

Só que muitos torcedores e até comunicadores não entendem isso.

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Foto: Gabriel Leite / AFC

Futebol de base não é resultado, é experiência

Nos últimos dias, narrei a final do Campeonato Potiguar sub-20, onde América e Força e Luz empataram em 2 a 2 e o jogo, que teve uma crônica bem divertida, foi decidido nos pênaltis, com o time elétrico, de menor expressão, vencendo e garantindo o título. O América foi o time mais goleador da competição, só perdeu a primeira partida. O Força e Luz, campeão, passou em terceiro na sua chave, só venceu duas partidas com bola rolando e ganhou todas as partidas das três fases de mata-mata superando seus adversários nos pênaltis.

Após o fim do jogo, vi o mesmo tipo de comentário ser reproduzido por diferentes pessoas de diferentes formas: “Há algo de errado na base do América”. Isso porque os times de base (sub15, sub17 e sub20) não conseguiram vencer nenhuma competição estadual em 2024. E esse mesmo discurso também veio à tona na última eliminação do ABC, que também é um dos maiores clubes do Rio Grande do Norte, nas quartas de final, para o próprio Força e Luz.

Potiguar sub-15: América e ABC eliminados nas quartas de final, Santa Cruz campeão

Potiguar sub-17: ABC cai nas quartas e América nas semifinais, Alecrim campeão.

Potiguar sub-20: ABC cai nas quartas e América perde na final, Força e Luz campeão.

Sabe o que esses resultados significam? Nada.

É muito fácil eu avaliar os resultados sem fazer uma contextualização geral e tentar dizer que há algo de errado nas categorias de base de um time ou de uma região específica com base na derrota, mas precisamos ponderar algo que quase 100% dos teóricos do esporte no mundo concordam: na base, desenvolvimento e experiência são muito mais importantes do que resultados e títulos.

Claro, isso, para quem está mais habituado ao meio, parece até óbvio, mas na prática, há uma pressão por parte de empresários e da própria indústria do futebol brasileiro para que esses jogadores, principalmente em contextos estaduais e regionais fora do eixo, tenham currículo, rodagem por diferentes clubes, com números expressivos, para que, no meio de milhões de crianças, eles recebam uma migalha de destaque e possam ver, como Vitor Roque, o sol raiar diferente para o sonho que construíram na infância. Futebol, como mercado, é um triturador.

E quando a gente concorda e endossa o discurso resultadista, é nesse moedor de gente que estamos jogando os meninos que perderam uma final tendo a melhor campanha, por exemplo.

Vamos pegar esse exemplo, inclusive, do América. O time teve a melhor campanha e acabou perdendo para o Força e Luz, mas levou todos os prêmios individuais da competição e foi, na prática, o time que mostrou melhor futebol ao longo de cada fase, sem nos desfazer dos outros. No jogo, criou mais chances e acabou sofrendo gols em situações de falhas individuais (uma mão num pênalti e uma saída de bola errada), o que não tira o mérito dos meninos do Força e Luz, que colocaram um goleiro de estatura e envergadura acima da média no meio do segundo tempo - ele pegou três pênaltis e foi o protagonista da disputa. Detalhes.

Sabe qual era a principal diferença do Força e Luz para o América? Dentro de campo, o time do Força e Luz visivelmente tinha jogadores com mais “corpo”, fisicamente mais desenvolvidos, porque a grande maioria eram jogadores de 19 ou 20 anos, boa parte vindo do sub-20 do São Paulo Crystal, onde já jogavam juntos. Enquanto o América tinha meninos titulares de 17, que acabaram de jogar o sub17, mesclados com outros dois que desceram do profissional e os da categoria. Dito isso, considere que, no futebol de base, uma diferença de meses já é o suficiente para haver uma discrepância física.

Mais de um estudo sobre desenvolvimento de jovens mostra que jogadores nascidos no primeiro terço de meses dos anos acabam tendendo, em geral e em média, a ter um desenvolvimento físico avantajado, já que as divisões de categorias se baseiam no ano de nascimento. E, na base, é muito comum que o físico prevaleça. Ou seja, se você quiser resultados na base, oportunizar quem está mais desenvolvido é um caminho facilitador, mas e aquele talento franzino que ainda não tem corpo pra exigência física do jogo, mas possui uma genialidade e uma técnica diferenciada?

Por isso digo: quer conhecer um time resultadista na base? Veja quantos atletas nascidos no começo do ano eles revelam em relação aos demais. Tá cheio de exemplos no Brasil e, até por isso, vemos jogadores mais físicos sendo oportunizados no profissional em detrimento dos mais técnicos e, creio eu, que isso impacta na nossa base de forma geral, em todos os níveis.

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O jogo de futebol é multifatorial, decidido quase sempre em detalhes que não estão no controle do treinador e, muitas vezes, não dependem só da capacidade técnica dos jogadores. Você pode aumentar suas probabilidades de vitória com um time saudável física e mentalmente, entrosado taticamente, com boas relações e com jogadores de bom nível técnico e físico para aquilo que o time pretende fazer em campo. Mas o jogo não deixa de ser caótico e os resultados não deixam de ir contra a lógica - o que eu acho bem divertido.

Usamos o exemplo do América para explicar algumas questões, de como o contexto é importante, mas vamos pensar, agora, no exemplo do ABC. O time caiu nas quartas de final em todas as três competições de categorias de base de 2024 e, no profissional, só escapou do rebaixamento. Esportivamente, claro que é um ano bem abaixo nos resultados, mas isso é algo que deveria ser questionado na direção do futebol profissional, afinal, o ABC tem outras respostas práticas para essa questão.

Nos últimos anos, é o time do futebol potiguar que mais tem enviado jogadores da base e recém lançados ao profissional para grandes centros. O galera que foi para o Grêmio, o trio Reginaldo, Matheus Martins e Fessin, no Corinthians, mais recentemente Randerson e Andrey, que deram resposta financeira e esportiva para o elenco profissional. Além disso, tem jogadores formados na sua base fazendo parte de elencos do futebol local, como o zagueiro Lucas, que jogou a temporada pelo Santa Cruz e o meio campista Marquinhos Taipu, que foi destaque no estadual de 2022 e jogou a temporada de 2023 pelo Potiguar de Mossoró.

No lugar de olharmos para o resultado, para o título ou falta dele, por que não olharmos para esse e outros detalhes do processo? Por que não olharmos para a metodologia de treinamento e de formação, para como é o acompanhamento social e psicológico dos adolescentes, para onde e como está sendo feita a captação de jovens talentos, para a ausência ou não de investimento nos diferentes centros do futebol local e, também, para o retorno financeiro e esportivo de atletas formados para o clube. para o futebol local ou externo? Talvez levasse a gente para algum lugar.

Isso significa que não é necessário olhar de forma crítica para ABC e América? Claro que não, a gente tem que olhar de forma crítica, mas uma crítica com afeto, carinho e humanização, para toda a base do futebol brasileiro. O olhar do resultado desumaniza o processo de evolução e aprendizado pessoal e profissional desses adolescentes e pode trazer avaliações descontextualizadas e, logo, injustas, com o trabalho de quem está atuando na iniciação desses jogadores.

O resultado que te faz criticar um time de base, pode ser a frustração necessária para que aquele garoto de 14, 16, 20 anos, crie casca (inteligência emocional) para lidar com a trituradora emocional que é o famoso “futebol de verdade”. A dor faz parte da vida, e por mais que o futebol seja idealista e surrealista demais na expectativa dos torcedores, da imprensa e de empresários, a dor também faz parte dela.

Jogador tem que competir e cair para levantar, porque futebol é caótico. Jogador tem que cair para levantar, e as categorias de base servem para que isso seja vivido sem a pressão exagerada do profissional. Já basta a pressão mercadológica!


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