Futebol Interativo

02/10/24 | Leitura 7min

BODO/GLIMT E O “DINIZISMO” NORUEGUÊS

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BODO/GLIMT E O “DINIZISMO” NORUEGUÊS


Por Marcus Arboés

Se você acompanha futebol europeu, com certeza já ouviu falar do “pequeno” Bodø/Glimt, que foi responsável por uma das maiores, se não a maior, humilhação que Mourinho recebeu como treinador, uma goleada de 6 gols. Recentemente, eles venceram o Porto por 3 a 2, com um a menos o segundo tempo inteiro e possuem. A forma como esse time joga sempre chama a atenção e nós podemos relacioná-los com o estilo de jogo característico de Fernando Diniz.

Vitor Roque

O projeto de Kjetil Knutsen

Em 2017, o norueguês Kjetil Knutsen chegou a Bodø. O time local estava na segunda divisão, quando o treinador assumiu e promoveu. Na seguinte, manteve a equipe na primeira divisão norueguesa e, logo depois, conquistou o título da Liga da Noruega em 2020, 2021 e 2023. Tudo isso com uma metodologia tática e uma filosofia muito bem estabelecida. Um time jovem, pautado no domínio da posse ofensiva com muita liberdade na hora de atacar, que ataca e defende com todos os jogadores. Esses princípios, junto de algumas ferramentas táticas, que vou detalhar mais a frente, fazem o estilo de jogo do Bodø ter semelhanças com o que era praticado no Fluminense e está passando a ser praticado no Cruzeiro.

Vitor Roque

O time ideal do FK Bodø/Glimt

A Horda Amarela, como é conhecido o campeão noruguês, ataca e defende no 4-3-3 em todas as alturas, mas o sistema tático não é tão importante assim para a compreensão das dinâmicas de como o time joga, principalmente de como ataca. Apesar disso, vamos partir desse desenho hipotético para explicar, mais ou menos, o estilo de jogo da equipe.

O goleiro Hikain é um dos poucos não noruegueses/dinamarqueses no elenco e tem sido muito importante defensivamente, jogando com os pés na saída e dando bons lançamentos diretos. Os zagueiros titulares são Bjortuft e Nielsen, de 19 anos. Ambos são bons construtores, condutores e fazem lançamentos longos com muita precisão. Os laterais Bjorkman e Sjovold são bem técnicos e não muito agudos, já que costumam participar mais da construção das jogadas e não fazem muitas jogadas de lateral de campo.

Berg é a base do time, um jogador que já vem sendo observado há anos, mas “passou do teto” da idade de jogar em ligas mais promissoras. Controla a exposição do time no campo de ataque e também participa da armação, além de ser ótimo no pós-perda. No meio de campo, Evjen é um meia articulador jogando pela direita. Fet e Saltnes, que é mais experiente, dividem a função de meia central pela esquerda com mais funções de atacar espaço, oferecer apoios e arrastar a marcação, quando o time tem a posse.

O jovem ataque é formado por Määttä, emprestado pelo Groningen, da Holanda, que é um ponta mais agudo, de velocidade e um contra um na direção da linha de fundo; o centroavante Hogh é o alvo do jogo direto, sempre, pois apesar de não ser muito técnico e nem muito rápido, ele é equilibrado e consegue ter boas vantagens nesse tipo de situação; e o craque da equipe, Jens Petter Hauge, que já foi uma grande promessa do país e voltou para casa após “não dar certo” no Milan e não ser aproveitado no Eintracht Frankfurt.

Vitor Roque

Hauge e a importância do contexto

Quem viu pelo menos os melhores momentos do jogo contra o Porto, sabe que o ex-Milan deu show no jogo com dois belos gols e uma assistência, sendo um dos tentos quando o time já tinha um a menos. Foi nesse tipo de atuação que ele se destacou e foi comprado pelo time rossonero quando ainda era um garoto. Só que o sonho de futebol de alto nível para Jens Petter Hauge não foi um mar de rosas e a resposta também pode ser tática.

No Milan, o norueguês era utilizado como um ponta esquerda agudo, tal qual Pioli usava Rafael Leão, mas participando pouco do jogo e tendo poucos minutos, além do salto de nível da competição, ele acabou não conquistando espaço. O treinador não se adaptou ao que ele já vinha fazendo na liga local, e com certeza o estilo diferente de jogo influenciou diretamente.

Em sua passagem pelo Eintracht Frankfurt, eu consideraria a situação pior, pois ele foi utilizado como ponta direita ao pé natural - o que influencia o jogador a receber utilizando a linha de fundo, participando mais com cruzamentos -, e essa alteração não lhe fez bem, quando jogou sob o comando de Dino Toppmoller, mas teve seus bons momentos ao lado de Oliver Glasner, quando atuava por dentro com um pouco mais de liberdade. Mas, independente disso, também há sua parcela de responsabilidade em não ter jogado bem. No Gent, por empréstimo, com a camisa 10, foi utilizado como um meia interior esquerdo e como ala esquerdo em um jogo mais posicional e sequer tinha minutos ou toques na bola o suficiente.

Eis que surge o convite para “voltar para casa”, num novo projeto do clube que lhe formou na pequena cidade de Bodø, onde nasceu, cresceu e está sua família e amigos de infância. Na forma como o time de Knutsen, treinador que lhe potencializou na adolescência, joga, Hauge é alma da equipe, ele sempre está onde a bola está, o jogo sempre vai para onde ele está e as coisas acontecem a partir da sua capacidade de condução, passe e tabela em curtos espaços, lançamentos longos, organização e finalização. O contexto tático e pessoal/cultural, com certeza influencia no excelente desempenho atual, já que ele se comunica no seu idioma, com gente do seu país, na sua cidade.

Como utilizar esse ponta criativo, que gosta de ser o centro do jogo? A resposta está na liberdade dada dentro do jogo funcional/aposicional adotado pelo time norueguês.

Como o time ataca?

Como já dito, parte de um 4-3-3, mas não devemos nos apegar muito ao sistema tático, já que o estilo de jogo é muito mais funcional/aposicional, ou seja, não se baseia tanto no sistema, os jogadores podem se movimentar com maior liberdade em relação às posições de origem, juntando atletas em volta da bola, prezando por uma posse mais cadenciada ou utilizando o jogo direto na direção de Hogh, o que explicarei melhor mais a frente.

Quando ataca pelo lado direito, a aglomeração de jogadores no corredor de fora tende a ser muito maior. Hauge sempre sai da ponta esquerda para dar opção como se fosse um dos meias, enquanto o meia central do lado direito (Fet ou Saltnes) avança na área como opção e o lateral esquerdo centraliza, já que a intenção do time não é virar a jogada. A sobrecarga de jogadores próximos da bola gera confusões nas defesas adversárias, apesar de deixar a equipe mais exposta para um possível contra-ataque, já que ataca com muitos atletas. Inclusive, as jogadas tendem a ser concluídas com Hauge: finalizando da entrada da área ou dando um penúltimo passe no corredor direito ou até mesmo fazendo o cruzamento, como no nível, para ver o nível de liberdade e influência dele no jogo.

Na jogada anterior e nesse quadro tático, mostramos algumas semelhanças com o nível de liberdade posicional dada com os times de Fernando Diniz e o tipo de ferramenta utilizada. No vídeo do cruzamento de Hauge pela direita, a jogada começa e termina no mesmo corredor.

Quando o setor é congestionado, os times usam um “iô-iô”, que é uma troca de passes para trás para reajustar o movimento, confundir a defesa adversária e utilizar os espaços pelo mesmo local. Outros utensílios táticos vistos também no jogo funcional de Diniz e no time norueguês são as escadinhas (linhas de passe em diagonal para facilitar a progressão) e paralela cheia (três jogadores na lateral do campo chamando a aproximação de quem está por dentro para gerar sobrecarga no corredor lateral. O time tende a usar essas dinâmicas, também, para deixar os zagueiros livres para tentar um lançamento direto na direção de Hogh, o centroavante.

O jogo direto é um destaque importante da equipe contra times que se postam mais no seu campo ou marcam mais alto. Os passes ou lançamentos por cima chamam a atenção tanto nas transições, quanto na construção, já que os dois zagueiros e até o goleiro possuem bons valores nessa capacidade e essa é a primeira diferença com os times de Fernando Diniz, que não tentam muito esse tipo de jogada, no máximo diagonal longa para os pontas em projeção.

Hogh tanto pode ganhar no pivô, quanto se desmarcar em velocidade rompendo a marcação adversária. Dois gols contra o Porto saíram de jogadas assim, o dele e o de Hauge. Esse, por sua vês, sempre começa esse tipo de jogada na posição de origem, a ponta esquerda, mas vai centralizando enquanto a jogada vai afunilando, visando finalizar da entrada da área. Para gerar esse espaço, um dos jogadores tem que entrar dentro da área, afundando a marcação adversária, como Saltnes fez muito bem no gol mostrado.

Um princípio visto nesse gol é o “atrair para gerar espaço”, que independe do time ser mais ou menos posicional, mas nesse caso, é feito sem se prender muito às zonas específicas do campo e com um pouco mais de caos. Nesse vídeo, que mostra o comportamento do time quando ataca pelo lado esquerdo, tem um exemplo básico: alguns jogadores arrastam a marcação para que outros tenham espaço ou vantagem. Hauge é um ponta criativo, é normal ele receber e procurar um apoio por dentro para tabelar, procurar uma condução ou drible pelo meio para passar para alguém, mas o time, nessas situações, costuma tentar liberar o corredor central.

Saída de bola posicional com jogo direto

A saída de bola do time parte sempre de um 4-3-3 e, quando é feita com o adversário marcando em bloco alto, geralmente visa tentar o jogo direto de diversas formas diferentes. A principal e mais utilizada, como nos confrontos contra o Estrela Vermelha pelos play-offs da Champions League, é o jogo direto para Hogh com lançamentos do goleiro ou dos zagueiros.

Quando não é isso, há uma dinâmica padrão de procurar o terceiro homem (um jogador toca para um segundo que serve de apoio para encontrar um terceiro se desmarcando), detalhe caracterizado na saída de bola mais posicional, que eu consideraria ser a principal diferença com os time de Diniz. Esse jogador, que recebe de frente, podendo ser Berg ou um dos zagueiros, geralmente tenta lançamentos diretos para os atacantes.

Outro atleta muito utilizado para um alternativa diferente, vista em vários jogos é o lateral esquerdo Bjorkan. Ele gosta de conduzir para dentro, enquanto a movimentação dos meias atrai a marcação gerando espaço para ele e sair jogando curto com alguém próximo ou fazer um lançamento com o pé trocado, mas ele também pode ser o alvo da jogada. Naquilo já dito de atrair para gerar espaço, o time faz um balanço para o lado esquerdo contra adversários que fazem perseguições individuais longas na marcação para gerar espaços no corredor esquerdo que Bjorkan possa utilizar para progredir, veja:

Como se defendem?

Há três grandes princípios defensivos que, inclusive, são parecidos com os dos times de Fernando Diniz: contra-ataque imediato: pressão pós-perda sempre juntando um ou dois jogadores no portador da bola, tentando contra-atacar no contra-ataque do adversário ou após recuperar no ataque do oponente; marcação por encaixes individuais longos, sem usar muito a referência zonal da posição; se todos atacam, todos defendem em todas as alturas. O 4-3-3 sempre é o ponto de partida, o que não é tão convencional até para o futebol norueguês.

Quando defende no seu próprio campo faz sempre perseguições individuais mais longas, tentando sufocar o adversário, roubando a bola do seu pé, o que pode tornar a marcação um pouco manipulável, mas a compactação do time tanto vertical quanto horizontal na defesa compensa um pouco isso. A ideia é roubar a bola ou sufocar a ponto do adversário querer recuar, sendo perseguido na direção do próprio gol.

Em uma altura média ou alta, o time também tende a se descompactar bastante, fazendo perseguições individuais mais longas, com o ímpeto de recuperar a bola sempre mais próximo do gol adversário. Esse geralmente é o comportamento da equipe contra qualquer tipo de adversário, já que marca melhor assim do que no próprio campo, e tem mais vantagem se pegar o adversário desorganizado no próprio campo, ainda que seja ótimo no jogo alongado com os seus atacantes e meias. Perceba que o contra-ataque sempre é direcionado ao gol e que os padrões de movimentação sempre são na intenção de confundir a marcação adversária, tentando gerar espaço por dentro.

Vitor Roque

Esse retrato fala muito da semelhança dos times de Fernando Diniz com o de Knutsen: sobrecarga no corredor lateral, bastante liberdade posicional, as ferramentas táticas utilizadas e até abrindo mão da amplitude do lado oposto. Esse treinador está no seu time há muito tempo, desde 2017, quando era auxiliar técnico. Isso mostra que também há universalização de ideias similares de jogo em países e culturas diferentes, e que o estilo de jogo funcional não é algo próprio do Fernando Diniz e nem necessariamente uma novidade!


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