14/11/24 | Leitura 5min
Por Marcus Arboés
Riscos no futebol é um tema que sempre vai e volta nos últimos anos do debate no futebol. Recentemente, João Paulo Sampaio falou em uma entrevista no Podcast Denílson Show sobre como jogadores habilidosos têm sido utilizados nas pontas do campo por uma tentativa do treinador de proteger, ter segurança para o atleta e para eles mesmos. Por isso, trouxe essa reflexão de como o risco está sendo visto no futebol.
A fala, que pode ser interpretada de forma crítica, diz respeito a uma insegurança que existe tanto em treinadores no profissional quanto nas categorias de base, em relação a manter jovens atletas com boas respostas jogando por dentro, por causa do risco que há nessa escolha. Por isso, é comum ver meias ofensivos habilidosos ou segundos atacantes sendo colocados na ponta, se adequando a sistemas de jogo de uma equipe ou para que ele possa ter ações de jogo com menos risco. Só que isso acaba refletindo em muito mais no comportamento geral do jogador do que se pensa, inclusive, na relação do atleta com a prática esportiva.
Antes de discutir tudo isso, vamos contextualizar do que estamos falando. Imagine um passe dado na ponta esquerda, o atacante domina, recebe em uma situação onde tem o lateral adversário na sua marcação, com um corredor a ser explorado nas costas desse defensor. Ele carrega a bola para o fundo e é travado. No lugar de arriscar um drible, ele prefere girar a bola para, taticamente, abrir espaço.
Isso é errado? Não, mas mostra um fato: o jogador optou por não arriscar. Um drible arriscado, um chute arriscado com pouco ângulo, uma tabela no campo de defesa, um passe de ruptura, quebrando linhas de marcação, na saída de bola. A cada dia que passa, eu, particularmente, vejo menos isso acontecendo. E, quando acontece, é sob condições de menos risco.
Por que se arrisca menos?
Essa resposta parece óbvia à primeira vista: se você arrisca menos, erra menos. Se erra menos, tem mais chances de vencer. E o futebol também é sobre vencer. As narrativas, os prêmios partem da lógica da competitividade de haver um vencedor e sempre foi assim, mas não necessariamente os times em outras fases anteriores do esporte arriscavam menos.
A evolução tecnológica, técnica, física e tática do futebol é uma verdade inquestionável, mas nem toda evolução traz só benefícios, porque nem futebol e nem a vida é “preto no branco”, “melhorou ou piorou”. Essa evolução do jogo trouxe pontos muito positivos para a profissionalização e equilíbrio das competições, mas em contraponto carrega problemas em outros pontos.
Isso porque o mundo ainda consome o futebol com base nas narrativas e nas respostas prontas: “Guardiola venceu, a Espanha venceu, o futebol europeu é superior taticamente e o que fazemos aqui é errado”. Já foi batido na tecla aqui em vários textos de outros colegas de como algumas ferramentas foram universalizadas e aquilo que foi narrativamente colocado como superior passou a ser copiado e reproduzido.
Jogo de posição, ataque posicional, marcação por zona, periodização tática, tiki taka, supervalorização das respostas táticas, supervalorização das estatísticas… essas ferramentas do jogo foram importadas em diversos locais diferentes do mundo como resposta mais evoluídas e corretas, superiores e mais modernas.
Essas ferramentas, por si só, não têm nada de errado, mas todas têm ônus e bônus na prática, umas mais do que outras e, claro, sempre dependendo dos contextos em que estão inseridas. Mas os grandes pontos em comum entre elas são: narrativa de modernidade superior; elas condicionam mais controle do treinador sobre as dinâmicas do jogo, sobre o jogador e mais padronização das individualidades; e, principalmente: minimizam mais os erros.
Não significa que Guardiola e seus times estejam errados por fazer isso, afinal, Doku e Foden arriscam e bem, o time atacar de forma tão exposta também é arriscado. É só uma das várias maneiras de chegar ao gol e vencer, mas que se forem aplicados por aí de forma cega e descontextualizada, vai gerar automatismos e imposições a todos os tipos diferentes de jogadores e de equipes.
Como isso se relaciona com o risco? O jogo e o jogador acabam condicionados a evitar erros. E aqui, não estou falando dos erros no processo de aprendizado, mas dos erros sob a pressão do resultado do jogo. Isso está diretamente ligado ao que João Paulo Sampaio trata no vídeo presente no início do texto: até mesmo no processo de formação dos atletas, os treinadores optam por se proteger e proteger o atleta do risco, colocando-os na ponta e abrindo mão de tê-los em espaços de maior risco de perda de posse, por exemplo.
Alguns atletas são tão condicionados pela padronização que passam a ter medo de errar. Acertam 95% dos passes nos jogos, mas todos são passes seguros, enquanto um Ganso da vida acerta isso ou mais tentando sempre algo fora da curva, um Neymar prefere tentar um passe mais arriscado com um ganho maior, porque tem capacidade e autoconfiança de que vai acertar.
E o que há de bom em correr riscos?
Dentro de um futebol a cada dia mais tático e mais padronizado, o drible arriscado, o passe arriscado, a jogada arriscada ou até a ideia, desmoronam parcialmente aquilo que está bem estruturado. Quando um risco dá certo, a estrutura se abala para cima ou para baixo. É um impacto primeiro mental, depois tático.
Jogar no contra-ataque tem ônus e bônus;
Jogar todo no campo adversário tem ônus e bônus;
Jogo funcional e posicional têm ônus e bônus;
Um jogo com mais acertos e menos riscos tem ônus e bônus;
Tudo no futebol tem ônus e bônus, inclusive o risco.
É só uma forma como todas as outras de chegar ao gol e vencer, a priori, e não é pior ou melhor que nenhuma outra. O Fluminense de Diniz, por exemplo, tinha um estilo de jogo muito arriscado. Filosoficamente, ele trabalhava em cima da mentalidade de autoconfiança do jogador para correr riscos para ter grandes ganhos.
A saída de bola é arriscada, o time vai acabar errando, mas muitos jogadores potencializaram tecnicamente e mentalmente suas características e conseguiram viver um auge no começo de 2023 e serem campeões da Libertadores pela primeira vez na história do time.
Isso não significa necessariamente que todo treinador adepto de um jogo funcional concorde com a filosofia de correr mais riscos no futebol, afinal, o ataque “aposicional” é só mais uma ferramenta, mas ela condiciona maior liberdade e autonomia até pela forma como se estrutura no campo, logo, maior auto confiança (algo que pode ser construído em qualquer cenário).
Vejam, por exemplo, essa fala do Renato Gaúcho sobre o estilo de jogo do Diniz no Fluminense:
“Eu sou totalmente contra o estilo de jogo dele. É uma roleta-russa. Saiu jogando bonito, todo mundo aplaude. Errou, é gol. Esse risco eu não corro, jamais vou correr. Do jeito que o time dele joga, o adversário sempre vai armar uma arapuca para roubar essa bola. Isso tem acontecido bastante e eles têm tomado gol ou sofrido ameaças. Fez e deu certo, é bonito. Errou? Perdeu o jogo”
Quando diz isso, Renato fala muito mais da saída de bola do Fluminense, conhecida como a mais arriscada do Brasil e talvez do mundo inteiro, que tira suspiro do jogador. Isso, porque Fernando Diniz é um pouco mais extremo, mas isso faz com que ele consiga “melhorar o jogador, melhorar a pessoa”.
E essa é a filosofia por trás de dar maior liberdade para arriscar. Errar é humano, todo jogador vai errar. Alguns jogadores irão errar mais e outros menos. Nem todo time no mundo vai ter condições estruturais, técnicas e de ter um Guardiola no comando para ser tão eficiente nos acertos.
O erro também é uma faca de dois gumes. Você pode se sentir mais confiante por saber que, se errar, pode recuperar a bola e tentar o arriscado de novo. Ao mesmo tempo, pode errar e se sentir para baixo. Só que no futebol e na vida, erramos mais do que acertamos.
Então ajudar os jogadores a lidar com os erros de forma sadia e a tentarem arriscar mais, fazer aquilo em que acreditam, humaniza mais o atleta.
Quando se fala de desumanização em inibir o risco, é isso. Por um futebol contextualizado, onde cada indivíduo é respeitado como ser humano e não como um reprodutor de números, vitórias e títulos. Por mais riscos no futebol.
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