17/12/24 | Leitura 7min
Por Marcus Arboés
Com a eleição de Bap, o nome mais cotado para assumir a direção de futebol do Flamengo é o de José Boto - algo praticamente dado como certo na imprensa. Nesse artigo, te conto um pouco da trajetória do diretor e scout português, abordando seu perfil de trabalho, a experiência adquirida nos anos de Shakhtar e Benfica e como isso pode contribuir para o Flamengo.
Quem é José Boto?
Antes de tudo, vamos conhecer o personagem que promete profissionalizar a pasta de futebol do Flamengo a partir de 2025. José Boto é um português de 58 anos que, atualmente, é diretor esportivo no NK Osijek, da Croácia. Por função, trabalha como responsável pela coordenação, inclusive do mapeamento e da observação de jogadores, além de abordar negociações, fechar contratos, possuindo uma influência na organização estrutural do departamento de futebol do clube, no planejamento e na montagem dos elencos.
Para chegar nesse cargo, mesma função que teria no Flamengo, precisou de uma experiência de anos no futebol. Primeiro, como treinador de equipes menos expressivas do futebol português no fim dos anos 90 e começo dos anos 2000, dando um passo diferente. É comum vermos, hoje, analistas e scouts virando treinadores, mas seu caminho foi o inverso. Em 2007, iniciou uma trajetória de 12 anos no Benfica, de Portugal.
Por um bom tempo, foi um funcionário do departamento de scout do clube, responsável pela observação de atletas, mas algumas temporadas depois virou o coordenador do setor, no clube de Lisboa, onde trabalhou, inclusive, com David Luiz e Jorge Jesus. Anos depois foi contratado pelo ucraniano Shakhtar Donetsk, onde ficou até 2022. Depois, veio uma rápida passagem pelo PAOK, da Grécia e, agora, no Osijek. Em ambos, foi diretor esportivo.
Tendo seu nome diretamente ligado ao Flamengo, podemos traçar possibilidades de como o português poderia melhorar ainda mais o pontapé inicial dado por Filipe Luís na mudança que o Flamengo precisava dentro de campo. Mas, para isso, precisamos conhecê-lo de forma mais aprofundada, principalmente a forma como trabalha.
Experiência na captação de atletas
Durante 12 anos de sua vida, José Boto foi membro do departamento de análise de mercado do Benfica, seja como scout ou como coordenador. Nesse período, contribuiu excepcionalmente para os cofres do clube português e para o salto da carreira de vários atletas, seguindo uma filosofia básica de investir em jogadores ainda bem jovens, desenvolvê-los, gerar ganhos esportivos com o desempenho em campo e financeiros com o lucro de uma venda futura. Só em Lisboa, a lista é enorme e já bem conhecida:
Esses são apenas alguns dos exemplos de sucesso de investimento com bom retorno que passaram pelo crivo de Boto no Benfica e, além de casos como Lindelof, Matic e Markovic, a lista fica consideravelmente mais extensa se adicionarmos os lucros gerados ao Shakhtar Donetsk na sua passagem. Mas qual o segredo por trás de tanto acerto?
Em entrevista para o jornal AS, da Espanha, Boto respondeu:
"Primeiro, acredito em departamentos pequenos porque a informação circula mais rápido. É uma questão de gerenciamento de tempo, desde o momento em que você vê o jogador até o que decide. Quanto mais tempo o jogador que te interessa joga e se destaca, mais você vai pagar. Os clubes têm que pensar que um departamento de scout não é para gastar dinheiro, é para economizar.
Muitas vezes, é tão importante quanto quem você traz e quem você impede o seu clube de trazer. Gastar dinheiro com olheiros é economizar dinheiro no final. Também somos o contraponto para as ideias de treinadores que querem trazer 'seus' jogadores, ou protegemos o clube da influência de empresários. Temos que evitar contratar por contratar."
Se formos simplificar: gestão responsável das contratações, pensando sempre nas prioridades da cultura do clube e da adequação das características do atleta ao modelo de jogo proposto pelo treinador, como? Filtrando as contratações para não contratar por contratar e simplificando a estrutura organizacional do departamento de análise de mercado para não gastar de forma errada.
Por parte da torcida flamenguista, há uma visão de que o clube tenta contratar qualquer jogador com grife, pagando cifras exageradas, sem aproveitar muito as oportunidades do mercado, às vezes pensando mais no nome do que na identificação com a cultura do clube, que sequer parecia ser compreendida e bem estabelecida na gestão de futebol anterior. Até por isso, um clube que faturou bastante, não conseguiu chegar em 2025 com grande poder de investimento.
Mas um dirigente português vai saber se adequar a cultura do Flamengo? um nível de exigência altíssimo e uma pressão enorme para um clube gigante.
Conhecimento do mercado brasileiro
Desde a saída do Benfica, em 2018, até o final da temporada 2021-2022, José Boto assumiu o cargo de head de scouting do Shakhtar Donetsk, da Ucrânia. Um clube muito conhecido no cenário internacional por ser a porta de entrada de jogadores brasileiros no mercado de futebol europeu, que fez bons processos de transição e de revenda para clubes de maior expressão, além da vivência de Champions League e outras competições expressivas.
Em alguns momentos você já deve ter visto o Shakhtar jogando com mais brasileiros do que ucranianos, inclusive, batendo o limite da regra de estrangeiros em campo na liga local ou com nomes como Fred, Douglas Costa, Willian, Fernandinho e outros chamando a atenção e até chegando na seleção brasileira, mas já se perguntou por que eles contratam tantos jogadores daqui?
Resumindo, o dono do time, Rinat Akhmetov, junto ao antigo treinador histórico do clube, o romeno Lucescu, passaram a investir em jogadores brasileiros, mesmo sem muito poder de convencimento além do financeiro, como foi com Brandão, há mais de duas décadas. O que era um investimento casual, passou a se tornar um padrão pela resposta esportiva e acabou fomentando uma cultura do clube, que costuma desenvolver excelentes jogadores locais de defesa para a seleção ucraniana, mas tem nos brasileiros o seu potencial ofensivo.
Primeiro de tudo, porque Akhmetov e Lucescu prezavam não só por dominar os adversários e vencer, mas sim dar um show e cativar. Viam nos brasileiros, o potencial técnico para entregar isso e gerar um desequilíbrio, ainda que precisassem se adaptar ao clima e a parte tática do futebol europeu, mas já tendo uma rede brasileira de apoio fornecida pelos próprios jogadores dentro do clube.
Em entrevista para o The Athletic, Boto explica que a ideia era contratar os jogadores assim que começassem a se destacar no Brasil, antes que times como PSG, United e Barcelona chegassem nesses atletas, já que a essência e a qualidade dos brasileiros sempre foi muito visada por times que buscavam possíveis protagonistas para desenvolver na Europa. Mas quais características eram buscadas?
"Podemos encontrar, nos jogadores brasileiros, muitas características que são fundamentais para o nosso estilo de jogo. Normalmente procuramos dominar as partidas, principalmente na liga ucraniana. Temos muita posse de bola. Jogamos um futebol muito ofensivo. A liga nacional não é a mesma que a Liga dos Campeões. Dominamos outras equipes, então temos muito pouco espaço para jogar.
Isso significa que procuramos jogadores que possam jogar em áreas menores; que são muito fortes tecnicamente; que passam com qualidade real; que têm muita criatividade; que podem inventar algo sozinho; que projetam espaço onde não há nenhum. Você encontra muitos jogadores que combinam com esse perfil no Brasil."
Visto que havia uma cultura de futebol estabelecida no clube e uma filosofia definida por trás das contratações e do planejamento de investimento e de desenvolvimento dos atletas, o Shakhtar atuava de forma estratégica no mercado, focando os esforços do scout no mercado do futebol brasileiro, algo que foi melhorado com a chegada de Boto no departamento. Enquanto outros clubes investem em criar redes de observação no mundo todo, o time ucraniano mapeia o mercado de forma mais efetiva e aprofundada buscando uma cultura de jogo muito específica.
A partir disso, podemos concordar que Boto não chegaria ao Rio de Janeiro de mãos vazias e sem bagagem no país, mas até aqui, há uma compreensão geral das características táticas individuais e técnicas do jogador brasileiro, visto que esse era o perfil de investimento na Ucrânia, mas e a compreensão da cultura brasileira?
Flamengo, Brasil e futebol de rua
Principalmente em 2024, a “cultura do Flamengo” foi algo repetitivamente discutido nas redes, incluindo o debate tático sobre qual deveria ser ou não o estilo de jogo do time. Filipe Luís, atual treinador da equipe, definiu a cultura do clube como paixão pelo futebol ofensivo, de risco.
Assim como Scaloni na seleção argentina, Filipe foi torcedor, jogador e agora é técnico, vivenciando diferentes etapas, inclusive na base, do que é ser Flamengo, tendo uma propriedade enorme para falar disso e, inclusive, de como fatores culturais podem ser expressos na parte tática, onde propôs grandes mudanças.
Primeiramente, houve uma considerável alteração de estrutura, onde o time saiu de um modelo de jogo mais posicional que, apesar das diferenças nos pormenores táticos, foi bastante utilizado por vários técnicos pós-Jorge Jesus (Sampaoli, Domenec, Vitor Pereira, Paulo Sousa, Rogério Ceni e, por fim, Tite). Não com todos, mas na maior parte do tempo, os técnicos adaptaram os seus jogadores e suas características ao modelo do time, sem abrir mão da estrutura geral.
Não é que não tenha funcionado, afinal, Ceni foi campeão, mas vimos outros treinadores terem sucesso, seja de resultado, desempenho ou de ambos, buscando um modelo de jogo que tivesse mais a ver com a característica dos principais jogadores do elenco: Everton Ribeiro, Arrascaeta, Pedro, Gabigol, Bruno Henrique, Gerson… Dorival e Jorge Jesus foram campeões com diferentes tipos de desenho tático e preferências dentro de um modelo de jogo funcional. Renato Gaúcho é controverso, não teve título, mas seu time jogou muito bem.
Até em fala recente do atacante Gabriel Barbosa, houve um destaque para exaltar Filipe Luís como um técnico incrível, já que conseguia desenvolver a parte tática a partir dos jogadores que tinha em mãos e não o contrário. Só nessa reta final de ano, o Flamengo mostrou muitas variações por contexto e, o principal, voltou a jogar um futebol que gera mais identificação no torcedor flamenguista.
Essa busca por um jogo visualmente “mais brasileiro”, “mais Flamengo”, tem muito a ver com raízes culturais que existem na vivência do torcedor brasileiro e, também, na experiência do torcedor flamenguista, que também se torna o jogador e o treinador flamenguista em um futuro próximo.
O jogo funcional não é melhor que outros e nem garantia de sucesso, mas por características, oferece uma plataforma tática onde há maior espaço para a liberdade de movimentação, aproximação, tabelas em jogo curto, jogadas de efeito e de autonomia, já que o time não precisa seguir o desenho tático o tempo inteiro e nem ocupar todos os corredores do campo quando têm a posse de bola.
Ao The Athletic, José Boto falou exatamente disso, como já visto em falas citadas em outro momento neste artigo, mas ele destacou nossas características ao elaborar que poderia encontrá-las na Europa, mas não na mesma quantidade e disponibilidade:
"Não é que essas coisas não existam entre os jogadores ucranianos, mas os brasileiros as têm em abundância. Esse é o espírito brasileiro. É alegria, liberdade, espontaneidade, técnica. É isso que o clube procura."
Essas características são discutidas constantemente no desenvolvimento de atletas de base no Brasil e tem se tornado um tema delicado e abordado por personalidades importante na formação de jovens, como JP Sampaio, coordenador das categorias de base do Palmeiras e por Vanderlei Luxemburgo, treinador referência em lançar jovens talentosos ao profissional.
Além da importação de métodos e ferramentas de jogo europeias sem uma abordagem adequada para a nossa cultura de futebol, apenas por reprodução técnica e teórica, um dos principais argumentos apontados para a queda na produção de craques do Brasil é a perda da essência do futebol de rua, que é fortemente enraizada e não morreu no Rio de Janeiro, como em outros locais do Brasil.
Separamos na íntegra uma fala de José Boto, em 2020, enquanto head de scout do Shakhtar, para o Footure, falando da importância da prática do futebol de rua para o Brasil:
"O futebol de rua é fundamental para o desenvolvimento do talento dos jogadores. Não só de sua parte técnica, como o tamanho da sua parte cognitiva do jogo, pelo fato de não haver nenhuma diretriz, não haver adultos presentes a crerem que o jogo possa ser jogado da forma deles. Acaba por ser um fator de aprendizagem excelente e, por isso, o Brasil também ter tantos jogadores de qualidade acima da média tem muito a ver, na minha opinião, com esses fatores.
Na Europa, isso não está tão presente porque, talvez, por sorte, não tenhamos tantas classes desfavorecidas, mas, por outro lado, porque a pressão das grandes cidades não dá espaço para que os filhos, sozinhos, na rua, brinquem e, nesse caso, joguem futebol.
O futebol de rua favorece porque te dá criatividade, te dá experimentação. Te dá a sabedoria de com quem está a jogar, sem influência dos adultos. Porque, para mim, mais importante do que as regras do jogo, o que não há é uma influência dos adultos naquilo que é a percepção do jogo.
Como não há cobrança do erro, o jogador não tem problema nenhum em errar, experimentar, tentar e voltar a tentar. Isso não acontece quando há a presença do treinador adulto, que é sempre aquela cobrança do erro – não há em todos, mas nós sabemos que a maior parte dos treinadores da base querem replicar aquilo que é o futebol profissional.
A rua nos dá a tentativa e erro, que é um dos fatores de crescimento seja a área que for. É o deixar errar para aprender, e a rua nos dá isso. Nós podemos errar, não temos ninguém a cobrar do nosso erro e, por isso, o futebol de rua será algo tão importante."
Nessa mesma entrevista, José Boto opina que as escolinhas para crianças não substituem o futebol de rua e cita o Bayern como exemplo, que fechou as categorias dos 7 aos 9 anos porque não parecia proveitoso tentar especializar as crianças desde cedo. Hoje, o grande desafio dos clubes com investimento em futebol de base é conseguir emular situações que estimulem a aprendizagem, a vivência e a autenticidade que as ruas oferecem.
Mas, especificamente no Rio de Janeiro, ainda há uma cultura muito forte de futebol periférico nas ruas, nas praias e em outros espaços mais livres da burocracia que o futebol profissionalizante oferece. Culturalmente, o carioca sempre carregou uma “alegria contagiante” que também se expressa no futebol e, quando falamos de um clube de massa, com representação gigantesca dentro do Rio e no resto do Brasil, as falas de Boto fazem mais sentido.
José Boto, além da experiência em captação de talentos, negociações e gestão de contratações e de montagens de elenco, do conhecimento do mercado brasileiro por vários anos investindo em jovens com potencial, mostra uma grande sensibilidade com fatores culturais, que precisam fazer parte das instituições no futebol e ajudam até a nortear o perfil de contratação que o clube terá. Hoje, o Flamengo precisa de tudo isso, para deixar de contratar por contratar, gastar com grife e dar tiros no escuro.
Percebeu o quanto o conhecimento tático coletivo e individual e a experiência relacionada a cultura do clube são importantes para a profissionalização de um clube, mesmo de um gigante como o Flamengo?
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