Futebol Interativo

18/10/24 | Leitura 9min

Futebol Feio e Professor como Técnico - A Surpresa do Japão

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Futebol Feio e Professor como Técnico - A Surpresa do Japão


Por Marcus Arboés

O futebol japonês tem sido abalado por uma grande surpresa, o Machida Zelvia. Recém subido da segunda divisão, esse time surpreendeu a todos por estar disputando o título da J-League com um futebol de “chutão” e cruzamento, um estilo contracultural considerado “feio” pelos japoneses, e pelo treinador ser um ex-professor de futebol colegial.

Futebol Feio e Professor como Técnico

Professor colegial como técnico - a grande aposta

O Machida Zelvia não está entre os três melhores times do campeonato a toa. Mesmo sem ter um elenco estrelado como os seus adversários, a proposta de jogo do time é muito clara e, apesar dos pesares, é muito bem treinado pelo Professor Go Kuroda. Isso mesmo, professor. Para a segunda divisão (J-League 2) de 2023, a Cyber Agent, empresa de mídia digital proprietária do clube, contratou um professor de um time colegial.

Antes de receber a grande oportunidade de sua vida, Go Kuroda passou mais de 30 anos trabalhando no Aomori Yamada High School, time colegial com o qual conquistou seis títulos de 2016 para 2022, sendo três deles do “Nacional de Ensino Médio”. Mas você deve estar se perguntando por que a Cyber Agent não investiu em um jovem treinador promissor, alguém que já tinha alguma experiência no profissional, então te explico.

Existe uma grande diferença no futebol junior/juvenil no Japão quando diferenciamos futebol de base e futebol colegial, e isso é básico: as competições escolares prezam mais pelo resultado, enquanto o futebol de base se preocupa com o desenvolvimento do atleta. Alguns jogadores, inclusive, preferem ter a vivência do futebol colegial e acabam se formando desse jeito, sem ter um desenvolvimento técnico-tático avançado necessariamente, mas sim físico e de mentalidade e competitividade, que a competição de base acaba não proporcionando como prioridade.

Façamos uma comparação com o Brasil: é mais fácil uma final escolar lotar estádio/ginásio, do que uma final de torneio de base. Isso porque há um grande apelo de competitividade e porque o esporte no ensino médio e no ensino fundamental no Japão possui um grande apelo na cultura escolar e até universitária. Kaoru Mitoma, por exemplo, destaque do Brighton, jogou futebol colegial e de base.

Por isso tudo, o futebol colegial é resultadista, enquanto o futebol japonês, no geral, tem toda uma preocupação com desenvolvimento técnico e de geração de identidade. Assim surge Machida Zelvia, com um elenco sem estrelismo e a mentalidade do High School, mesmo que, para isso, precise jogar “feio”. Vamos falar mais disso!

Futebol Feio e Professor como Técnico

Futebol feio? conheça o Machida Zelvia

Com uma forma de jogar contracultural no Japão, ou seja, saindo do jogo posicional mais técnico e veloz para um futebol alongado, extremamente físico e disputado, o Machida consegue levar vantagem contra os seus adversário, se impondo através da força e do “jogo pelo alto”. Para alguns torcedores, a vitória de um time que joga assim é um problema para o a cultura japonesa de futebol, afinal, equipes como Kawasaki Frontale e Yokohama FM, de um jogo de posição mais técnico, rápido e leve, representam mais a cultura nipônica.

A partir de um 4-4-2, onde os zagueiros, os laterais, os volantes e o goleiro têm capacidade de fazer lançamentos longos, o time ataca sempre com muita agressividade, buscando as disputas físicas, onde conseguem se sobressair em relação aos adversários, até pela característica do futebol japonês ser de jogadores mais leves. Ainda assim, não significa que o time não tem técnica, mas que a força, a intensidade e a vontade são os princípios essenciais.

Kosei Tani é um goleiro promissor, que sabe jogar muito bem com os pés. Constantemente ele busca lançamentos diretos no tiro de meta ou na saída de bola. Os zagueiros titulares são Dresevic e Gen Shoji, que já teve seus momentos na seleção japonesa, inclusive. Além de capitão, Shoji é um zagueiro camisa 10, afinal, ele é o termômetro da construção das jogadas e é muito bom com inversões e lançamentos.

O time joga sempre com um lateral mais físico e veloz e outro mais construtor. Hayashi é o lateral esquerdo titular, mas consegue jogar bem com os dois pés e pode ser utilizado na lateral direita, onde ora Suzuki vinha como titular, mas acabou perdendo espaço para Mochizuki, que é mais alto e até é bastante utilizado nos lançamentos longos. A dupla de volantes varia bastante, com rotação entre as peças: Shibato, Sento, Shimoda e Shirasaki. Todos eles tanto têm capacidade de construir, fazer cruzamentos precisos, quanto de ganhar a disputa física pela segunda bola após lançamentos.

Talvez o principal destaque seja o centroavante Oh Se-Hun, que passou a ser chamado pela seleção coreana, com mais de 1,90 de altura. O time sempre tenta jogar com um 9 de referência (Oh ou Duke) e um segundo atacante veloz, que ataca espaços (Erik - aquele ex-Botafogo - ou Fujio). Mas não é só chutão para eles ganharem na força ou na velocidade, Go Kuroda gosta de extremos rápidos, habilidosos e bons de cruzamento. Fujimoto e Na Sang-Ho são os titulares atuais, mas o antigo craque da equipe, Hirakawa, acabou indo para o futebol inglês.

Chutão, cruzamento e muita raça - a tática do Machida Zelvia


Esse vídeo representa bem alguns princípios de jogo do time. Tenta progredir para o lado para conseguir um cruzamento. Não deu? Retorna para tentar um cruzamento frontal. Não deu? Busca Shoji para avançar e tentar uma inversão. Não deu? Inverte o lado para tentar um cruzamento pela esquerda, seja na linha de fundo ou com o ponta usando o pé trocado. No fim, o time sempre ataca pelos lados tentando criar possibilidades de cruzamento. A ideia é ganhar na força. É assim na construção, no lançamento longo, nas bolas paradas, incluindo até os laterais: joga na área!


Mas vamos começar por baixo. Desde a saída de bola, o time costuma usar Kosei Tani (GK) para gerar superioridade numérica. Ele rotaciona passes com os zagueiros e os laterais até finalmente um dos cinco, incluindo o goleiro, claro, ter espaço para conseguir fazer um lançamento direto para o campo de ataque. O vídeo abaixo pode deixar um pouco mais claro: se o jogador pressiona um dos zagueiros, o goleiro tem qualidade para lançar o lateral por cima. Como Guardiola diz, o goleiro na saída te permite sempre ter um homem livre.


A saída de bola do time sempre pode buscar lançamentos diretos buscando os quatro jogadores de frente. Ou a bola vai na referência (centroavante Oh Se-Hun), para dar uma casquinha ou fazer o pivô, ou vai nos pontas ou o segundo atacante (Erik ou Fujio) atacando a profundidade. A variabilidade de capacidade do time de conseguir se dar bem atacando espaço e ganhando a segunda bola na força faz não valer a pena marcar o Machida Zelvia em bloco alto.


Isso porque o movimento de desmarque é muito coordenado, e acontece geralmente antes do armador lançar por cima de primeira. Ou seja, não é só chutão, é chutão treinado. No exemplo acima, a gente pode ver Erik se desmarcando pela ponta esquerda para receber o passe de primeira do lateral esquerdo Hayashi. No exemplo abaixo, o mesmo exemplo acontece. O desmarque é feito antes do passador receber a bola. Fujimoto escapa nas costas da marcação e recebe a bola longa de Shimoda (volante).


Essa jogada ainda destaca dois detalhes. Primeiro, o uso dos volantes para fazer o jogo direto. Nesse caso, o primeiro volante desce para gerar apoio na saída de bola e, depois da rotação para a esquerda, o segundo volante (Shimoda) baixa para o lado onde a bola está e faz o lançamento de primeira, um movimento coordenado que confunde o meio. Isso serve justamente porque o lateral em questão não é Hayashi e sim Sugioka, que é mais agudo. Percebe que ele é tão rápido que consegue acompanhar o lance após o ponta esquerda, Fujimoto, temporizar a jogada. Independente disso, isso mostra o time tendo prioridade de atacar por fora.


É óbvio que o time de Go Kuroda não vive só de bola longa, afinal, tem jogadores com capacidade técnica e velocidade para sair jogando, mostrando que não é total avesso a cultura de jogo japonesa. Ainda que raro, esse exemplo de ataque rápido mostra como o time sobrecarrega o lado do campo para tentar ter vantagem e terminar a jogada por fora, seja com finalização após um drible para o meio ou com um cruzamento, e geralmente com poucos jogadores. Mas em construção, o time não prioriza atacar assim.


Quando precisa construir as jogadas contra times que se defendem mais embaixo, o Machida Zelvia tenta dar um jeito de cruzar a bola na área, e pode fazer isso de diversas formas. A primeira delas é sempre tentar fazer a bola chegar na ala para que os laterais ou pontas consigam cruzar para os atacantes. Se não der, o time vai rotacionar a bola organizado em um ataque posicional, buscando alguma outra possibilidade de liberdade para fazer o cruzamento, como no primeiro vídeo do artigo. A inversão para o ponta/lateral do lado oposto é um recurso para conseguir isso.


Como nesse vídeo e no quadro tático, o jogador que mais executa inversões para os flancos é o zagueiro armador Gen Shoji, muito técnico no passe, na condução e que tem excelente visão de jogo. Constantemente, o time usa mecanismos táticos para ele ter espaço de conduzir a fim de fechar o bloco de defesa adversário pelo meio e lançar alguém por fora, principalmente o lateral ou ponta direita.


Além disso, os volantes são peças essenciais do time. Como já mostrado, eles desafogam a saída de bola, são opção para ganhar a segunda bola em lançamentos diretos, fazem a cobertura do time quando o Zelvia ataca e ainda podem ser os jogadores que concluem a jogada com cruzamento. No exemplo a seguir, a gente pode ver como Shirasaki (volante direito) organiza o balanço do time, orienta o seu companheiro e recebe de volta para inverter livre para o outro lado. Enquanto isso, Shimoda (volante esquerdo) já se projeta como opção de passe de retorno para fazer o cruzamento na área. Além de tentar cruzamentos frontais ou laterais, o Kurodabol é bola na área quando o jogo está parado, até no lateral.


Esse vídeo é só um exemplo. Vai zagueiro, lateral alto e tudo o que o time tem direito para área, enquanto um jogador de arremesso mais forte usa o impulso para cobrar um “latereio”, tentando vencer a disputa física dentro da área. É comum ver, em alguns jogos, o lateral esquerdo Hayashi ir lá para o lado direito para cobrar, enquanto o lateral direito Mochizuki vai para a área, já que tem estatura. Mas e se o time perder a bola?

Nesse e em outros contextos, a pressão pós-perda da surpresa da J-League é extremamente agressiva e, às vezes, acaba gerando falta ou até um jogo sujo, mesmo. Um jogador tira o espaço do adversário, esperando o segundo chegar e duplicar a marcação no oponente com a posse. A ideia é recuperar a bola e já forçá-la dentro da área de novo.

A primeira defesa do time, é no ataque, quando perde a posse. Requer muita energia e vontade!


Por mais que defenda desse jeito, se valendo do físico, o time não se desgasta tanto em organização defensiva. Quando defende, sempre em 4-4-2, no campo do adversário, faz perseguições individuais que, muitas vezes, não são pressionando o portador da bola que dá o passe, mas sim quem recebe de costas, sem abrir muitos espaços de “bola descoberta” para o adversário fazer lançamentos com liberdade. Quando isso acontece, as costas da marcação do time são sempre bem protegidas pelo movimento de controle de profundidade, onde o gatilho de ação do defensor acontece antes mesmo da bola sair do pé de quem lança a bola longa.

Apesar dessa padrão desencaixar um pouco o time, a perseguição mais individualizada só acontece quando a bola tá no campo do adversário e é sempre dando certa liberdade para o passador. Quando a bola chega no campo de defesa do Zelvia, o comportamento passa a ser de defender primeiro os espaços, ou seja, defesa por zona, algo que é feito pela grande maioria dos times japoneses, até pela característica de zagueiros mais rápidos e técnicos no combate.

Só que essa marcação por zona é feito de forma pressionante e ativa, ou seja, o jogador com a bola passa sempre a ser pressionado de forma imediata, enquanto outro atleta do time recompõe e compensa o espaço deixado ou a própria linha de defesa se ajusta com um balanço defensivo, tentando sempre deixar a linha de zaga e de meio compactadas para tirar o espaço de alguém do adversário receber por dentro.

Nos confrontos dentro dessa disciplina, muita força, vontade e sangue nos olhos para ganhar todas as disputas!


Futebol Feio e Professor como Técnico

É com esse jogo “feio”, simples e resultadista, com o recheio do futebol de High School do técnico que passou 30 anos disputando campeonato colegial, que o Machida Zelvia subiu para a primeira divisão japonesa e ainda está disputando o título. Em um movimento contracultural, onde a maioria dos times parte do jogo de posição japonês, mais técnico, veloz e objetivo, o time de Go Kuroda alonga a bola, tenta ganhar no físico e consegue, para a angústia de boa parte dos fãs locais de futebol.

Mas toda forma de jogar e ganhar é válida, não é porque o Machida Zelvia está tendo sucesso assim que todos os times vão ter ou que a identidade de futebol japonesa vai se perder. Ainda que alguns tentem dizer que o time não é de Tokyo, ele disputa para ser o melhor da capital, contra o FC Tokyo e o Tokyo Verdy. No seu modesto estádio com capacidade para 15 mil, envolto de árvores, Go Kuroda e seu plantel surpreendem e mostra que não existe um modelo certo e único para vencer.


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