11/10/24 | Leitura 5min
Por Marcus Arboés
Recentemente, o jogador Leozinho, do Ituano - aquele ex-melhor sub-23 do mundo no futsal -, recebeu um cartão amarelo após tentar dar uma carretilha (ou lambreta) no adversário e sofrer uma tentativa de agressão. Esse tipo de evento me faz refletir sobre como o futebol está se relacionando. Afinal, para que serve? Quem dribla merece ser punido?
Por que árbitros punem jogadores por driblar?
Nós podemos iniciar essa reflexão a partir dessa pergunta, mas é importante salientar que, na súmula, o árbitro da partida do Ituano afirmou que o amarelo foi dado por palavras proferidas pelo jogador e não pela tentativa de carretilha, ainda que as imagens não dêem muito a entender isso. Leozinho, no fim das contas, foi vítima de uma postura de agressividade do adversário após o que, este, considerou provocação ou desrespeito, mas pode ser lido de diversas outras formas.
Esse não seria o primeiro caso de jogador brasileiro punido com cartão amarelo por tentar o exato mesmo drible. Em 2021, Lucas Paquetá tentou dar a carretilha/lambreta no jogo entre Lyon e Troyes, foi punido e defendido por Neymar, que, no anterior, também havia sido punido com a mesma cor de cartão por “lambretar” o adversário no jogo entre PSG e Montpellier, também pela Ligue 1. De acordo com o árbitro, Neymar insistiu nos dribles após uma tentativa dele de mediar e até mesmo o zagueiro Kimpembé confirmou que o juiz daquele confronto justificou o cartão pela falta de respeito de Neymar com o oponente.
Naquele período, o árbitro brasileiro Péricles Bassols, em seu blog para a TNT Sports, fez uma publicação tentando justificar o cartão dado para Neymar com base no contexto. Dentro do seu argumento: 1. vários confrontos começam a partir de lances assim; 2. o árbitro está sentindo o clima do jogo, as provocações e as rivalidades de dentro do campo, nós não. Essa perspectiva, de Bassols, coloca o juiz Jerome Brisard como alguém preventivo, que não estava punindo o drible, mas sim evitando um possível tumulto.
Se considerarmos o cartão amarelo uma desvantagem para qualquer jogador em campo, é realmente justo que Neymar, Leozinho e Paquetá sejam punidos? A partir desse primeiro argumento de Bassols, podemos refletir, também, que a briga acontece porque o jogador driblado se sente desrespeitado, mas será que a intenção é essa mesmo? E até que ponto driblar um jogador com intenção de mexer com seu emocional deveria ser considerado um problema?
Essas são perguntas que podemos responder e refletir sobre na sequência, mas é muito importante ressaltar que é muito difícil, pesquisando, encontrar jogadores não brasileiros no futebol europeu que já foram punidos por uma tentativa de drible sendo considerado como provocação. Existe uma visão negativa do europeu quando o brasileiro usa o que é seu por cultura, por vivência, o drible, como um recurso do jogo. Existe uma visão negativa quanto à provocação, que é algo que sempre vai acontecer.
Drible como recurso x Drible como provocação
Independente do tipo de drible, no futebol moderno, de hoje, já se dribla muito pouco, porque o jogo é mais curto, mais físico, e a maioria dos times do mundo inteiro possuem padrões parecidos de mais domínio de posse e circulação da bola a partir de estruturas posicionais, onde poucos dribles são vistos e, no geral, são mais estimulados em situações de um contra um. Por isso, é importante separarmos, antes de tudo, a intenção por trás do drible.
O drible “europeiamente aceito” é o drible objetivo, para frente, na direção do gol. Há uma visão até romãntica, ao meu ver, do driblar para frente para buscar ter vantagem e ela surge de uma desvalorização do drible para trás, inclusive. Esse drible possui a intenção de te deixar mais perto do gol e sustenta a visão geral que se existe hoje no mundo do futebol de que a partida deve ser um frenesi, afinal, o consumo de tudo no mundo hoje é mais rápido e frenético, então o consumidor se tornou mais impaciente, querendo uma intensidade (ou fisicalidade) infinita até mesmo no esporte.
Essa percepção diminui a imagem do drible para trás, inclusive gerando uma impaciência no torcedor. Você já ouviu a frase “que raiva, esse cara só dribla para trás!!!”? Ela é óbvia, se o gol está na frente, eu tenho que driblar para frente. O drible para trás tende a ser mais seguro e mais fácil que o drible para frente, por ser contra o movimento do zagueiro. Apesar de mal visto, ele possui a sua utilidade: clarear uma jogada e mudar a direção ou zona de ataque, mudar o ritmo da jogada, gerando outros tipos de vantagem para tentar chegar ao gol de outra forma, porque o campo está congestionado, ou até mesmo provocar emoções no marcador.
E aqui entra o drible que não é tático, não tem a intenção de necessariamente te levar ao gol, o drible provocativo. Isso só é visto como algo negativo, porque alguém se sente ofendido com esse tipo de drible e porque há uma questão moralista (e você tem direito de ser moralista, se quiser) que acaba entrando dentro do enfrentamento.
Moralmente, muitos professores de escolinha ensinam que o ético é jogar com respeito, sem provocar o adversário, mas convenientemente, sabemos que, na prática, no profissional, as relações de adversidade em campo são muito mais nocivas. Jogadores que são amigos e se gostam, como adversários, se provocam e falam coisas ofensivas uns para os outros.
Há vários tipos de vantagens táticas no futebol, mas pouco se fala de um tipo de “vantagem emocional”, quando, num esporte que é fortemente psicológico, você se aproveita ou gera condições emocionais no adversário afim de vencer o jogo ou de deixá-lo estressado, em desvantagem por um cartão ou até de conseguir uma falta próxima a área oponente. Você ache feio ou bonito, o drible provocativo é um recurso para desestabilizar o emocional do adversário e ganhar algo com isso.
Se há tanta coisa moralmente inaceitável no futebol dentro de campo, que os jogadores relevam quando saem do estádio e voltam para casa, o drible é muito menos desrespeitoso que tudo isso. Xingamento, pancada maldosa, tentativa de humilhar e por aí vai. Tudo isso perpassa o desrespeito pessoal e é aceito por conveniência.
Mas se formos punir tudo isso, o que sobra? O drible que provoca e gera comoções positivas em quem vê e negativas em quem sofre, faz parte da nossa cultura.
Drible como expressão
E quando falamos de cultura, buscamos uma questão de identidade, o drible vai muito além de um recurso esportivo, é uma ferramenta de expressão corporal e cultural, tanto quanto a música, a pintura, a dança, o teatro, a poesia, o cordel, a capoeira. No futebol, eu iria além, drible é uma ferramenta de sobrevivência, de ser brasileiro, de buscar um pouco do que se é.
Nosso corpo e nossas escolhas e ações podem ser entendidas como expressão de tudo o que vivenciamos. Quando um jogador profissional dá uma carretilha num adversário, além de poder ser um dos diversos recursos que vimos ali em cima, ele se resgata um pouco no meio do ambiente de pressão. O drible resgata sua criança, que não tinha regra e podia driblar livre no futebol de rua no asfalto, no terrão, na praia, na quadra da pracinha e até dentro de casa. O corpo responde aos estímulos psicossociais e culturais do atleta.
Driblar não é só uma questão de ter vantagem, de tática, de provocar. O drible é tudo isso, mas vamos sair um pouco do moralismo e do tecnicismo. O drible é uma forma do jogador brasileiro ser brasileiro. Se o sistema do futebol já impede isso ao máximo, se as tendências táticas acabam não estimulando, que o drible possa ser uma forma do brasileiro ser brasileiro.
Punir o drible, é tirar do jogador sua própria essência. É negar ao jogador o direito dele de ser ele mesmo. E quem se incomodou com o drible que lide.
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